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Mário Bolota II

Um sintoma desta anomalia social poderia ser facilmente verificada quando se atribui à representação do mal tantos apelidos. O demônio, o inimigo, o catíço, o capeta, o cramulhão, o coisa-ruim, satanás é recordista de codinomes. O inferno está cheio de apelidos. Mário desejava, após a sistematização de sua ciência, partir para etapas metafísicas de seus estudos, sabendo que se tratava de uma fonte inesgotável de oportunidades de aprofundamento.

O que mais lhe incomodava em seu próprio apelido, fonte dolorosa que inspirou sua doutrina, era a gratuidade imbecil de sua criação. Mário era irmão do meio, sendo seu irmão mais velho, Otávio Augusto, já muito gordo desde a mais tenra infância. O caçula, Reginaldo, nasceu muito fraquinho, prematuro, e não se sabe por qual cargas d’água, tendo vingado com saúde, jamais perdeu sua forma magricela, quase esquelética. Dos três, Mário era o mais normal, nem gordo, nem magro, nem forte, nem fraco, nem alto, nem baixo. Por suas características físicas, portanto, não seria alvo preferência dos apelidadores, gente cruel que tem prazer em ressaltar os defeitos e peculiaridades íntimas dos outros.

Embora não fosse, por assim dizer, do grupo de risco do apelido, Mário foi tragado pelo destino quando seu núcleo familiar em si já tinha os requisitos para um apelidamento coletivo, em função das diferenças entre os irmãos: um magro, um médio e um gordo…e a associação à fábula dos três porquinhos foi inevitável. Ainda no primeiro colégio, formado o trio de irmãos no recreio, foi sentenciado por um colega qualquer, famigerado, filho-da-outra: Reginaldo Bolinha, Mário Bolota e Otávio Bolão, tendo este último derivado posteriormente para Tavinho Bolão. Em questão de apelido não ampla defesa, nem direito ao contraditório. O julgamento é sumário e a pena geralmente é perpétua: Mário Bolota para sempre.

Tendo vivido as agruras deste apelido através da infância e juventude, chegara a hora de denunciar este sistema injusto e desumano. Com seu livro “A CIÊNCIA DA APELIDOLOGIA”, finalmente, Mário depuraria sua dor, numa alquimia anímica, transformando seu penar em serviço ao próximo, em escala global. A dor é mãe da ciência. Ele realmente tinha o desprendimento de alma de revisitar cada ocorrência desairosa de sua vida, cada um dos deboches, das caçoadas, para deste petróleo emocional extrair o mais importante conceito científico dos últimos séculos. Estava emocionado.

Lutando incansavelmente contra a insensibilidade das editoras, muito centradas nos modismos e evidentemente desinteressadas em publicar algo de real qualidade, Mário acabou por achar uma porta aberta. Alguém se impressionara com a obra e resolvera publicá-la, no início numa tiragem modesta, mas com a possibilidade de ampliar este oferecimento mediante a demanda. Era o que havia. Se tratava da Editora do Seu Joaquim Almeida, conhecido no meio como Joaquim Trombada. Muito solícito e amistoso, demonstrou profundo interesse no tema, por razões científicas. A sorte estava lançada e as ideias de Mário Bolota iriam, finalmente, ganhar às ruas. Estava emocionado e agradecido.

Tudo preparado, a última prova do livro corrigida, data de lançamento marcada. Nas vésperas das prensas da editora começarem a dar corpo à obra, Mário foi chamado a conferir os detalhes da capa, muito bonita, com um desses desenhos abstratos instigantes, título centralizado em elegante escrita em caixa alta, e seu nome em baixo: Mario de Assis da Silva. Algo não o agradou neste formato de capa e ele decidiu então solicitar a Seu Joaquim uma pequena modificação. Com um desenho tão bonito, com um título tão imponente, com uma letra tão elegante, com aquele conteúdo restaurador do conhecimento humano, o nome do autor precisava ser mais impactante: ao invés de um nome tão comum, nosso autor pediu que constasse daquela capa primorosa os seguintes dizeres: “A CIÊNCIA DA APELIDOLOGIA, de MÁRIO BOLOTA”. E assim foi.

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