30 C
Fortaleza

Voltando àquela estrada do sol poente

A estrada era estreita, caminho de lá-vai-um, asfaltinho descascado, pálidas faixas pintadas, já quase apagadas. Deserto, caminho para Rio das Flores. Ali funcionava uma revendedora de carros, autorizada da Fiat, chamada Actualle. Vista com os olhos da época, era muito bonita e glamorosa. Mas a vizinhança era ainda de sítios, uma casinha acolá, um depósito perdido, um estábulo mais adiante. Era por onde Valença cresceria, quando sua prosperidade roubada finalmente voltasse.
Pois foi naquele lugar ermo, de madrugada, que se ouviu dela, um choro estridente, um pedido de socorro, um me-tirem-daqui.
Seu Osvaldo, velho de guerra, aceitou aquele trabalho para não ficar maluco. Aposentado da Thissen, de Barra do Piraí, acabara de ficar viúvo fazia uns quatro meses. Os filhos arrumaram para ele aquela ocupação de vigia noturno na concessionária de carros para que ele não ficasse mais sozinho nas longas noites de quem não tem mais afeto por perto. Mudou-se para a casa de um deles no Cambota, em Valença, trabalhava de noite e dormia de dia. Dormia pouco, como é de ser com os velhos. Pois foi ele que estava lá quando dela se ouviu. Num lugar baldo de ocorrências significativas aquele som era bem diferente. Não era um gato namorador, não parecia ruído de bicho. Parecia gente.
Joaquim era português, mas tinha cara de turco. Casado com Maria, esperavam seu segundo filho, vida na pequena prosperidade dos primeiros anos de família. Eles tinham um segredo, bem esquisito para a ocasião. Segredo combinado nas juras loucas de amor dos namoros em que ardem os corpos e sufocam-se as almas. Mantinham seu propósito assim, camuflado, porque todas as gentes têm o péssimo hábito de se meter na vida alheia a julgar os fazeres e quereres, sem piedade.
Pois foi ele que, ouvindo sobre ela, partiu ao seu encontro como um homem perdido no deserto se entrega à água afortunadamente encontrada. Ele poderia derrubar um muro de uma fortaleza medieval com seu ímpeto. Glória era médica, formada em Juiz de Fora. Tinha esse nome em homenagem à Padroeira de sua cidade natal, Valença. Competente e dedicada, fez da pediatria sua liturgia do dia a dia. Era sua missão na vida e ela tinha plena consciência disso. Fazia o que gostava de fazer, mesmo com todos os ossos deste ofício. Vida arrumada, consultório montado, mantinha vínculos com os hospitais da cidade também.
Pois foi Glória que estava no Hospital naquelas alturas, quando ela lá chegou. O plantão xoxo, sem grandes emergências, não prometia muito naquela noite, mas a surpreendeu muito.
Maria, grávida de um menino nasce-não-nasce, com oito meses de barriga, estava sem emprego. Estudava para concurso, dava umas aulinhas para ter o que fazer, e se sentia um tanto ansiosa para vencer na vida. Casada com um português que mais parecia um turco, cuidava do seu filhinho de três anos enquanto levava a vida modorrenta de mulher pesada, sempre em cuidados do não-pode-isso-não-pode-aquilo.
Pois foi Maria que, sabendo dela por uma velha fofoqueira, pôs-se ao dispor de Deus e, ao sabor da manhã, correu desesperada ao seu encontro. Essa gente toda se viu coadjuvando o destino, protagonista desta vida. Foi há dezoito anos. E a cada vez que se conta esta história se acrescenta uma coisinha soprada pela memória. Falar dos eventos épicos da vida é combustível para o re-viver mais intenso. E foi assim:
O velho Osvaldo tinha decido não pensar mais na falecida, nem se lamuriar. É duro perder uma companhia tão assentada nos nossos costumes. Mas já havia penado demais naquele vazio imenso. Se concentrava nas notícias do Vasco na rádio e nos programas da madrugada, enquanto ia arrumando as coisas na solidão da concessionária. Não era sua função, na verdade, limpar e organizar os ambientes, mas ele fazia isso pelo prazer de ser útil. Ouvia naquele momento uma resenha esportiva e estava vivamente interessado na escalação do time para o próximo jogo quando escutou aquilo. Era um ruído diferente, um tanto estridente, que parecia vir lá de fora, em frente à porta principal do salão de vendas dos carros. Encostou a vassoura na parede e diminuiu o volume do rádio para se concentrar naquela estranheza. Era realmente um barulho incomum. Talvez fosse o miado de gato mais esquisito do planeta, mas não lhe parecia ser isso plausível. Correu à porta principal, de vidro, e já mesmo antes de abri-la, vislumbrou uma caixa de papelão pardo, como aquelas de carregar produtos de supermercado, posta diante da entrada da loja. Dali vinha o choro. Era um choro.

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