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Fortaleza

Honestidade

Andava pelas ruas próximas de sua casa, o menino descalço. Já fora à aula e agora perambulava em busca de amigos para fazer alguma coisa. Na esperança de um jogo de botão, quem sabe de um pique-esconde ou um garrafão, corria as casas de seus companheiros de subúrbio uma a uma. Estava sem sorte, pensou. Neca de pitibiriba, nenhum amigo disponível, um no dentista, outro visitando a avó doente, mais um na aula de catequese… Estava só.
Baldo de companhia, resolveu voltar para casa e lá catar, na imaginação, alguma diversão. Naquela época ainda não tinham inventado as bugigangas eletrônicas de hoje em dia, que devoram o tempo das crianças, oferecendo um entretenimento acachapante, que pode ser utilizado individualmente como um elixir para a solidão. Nosso menino era do tempo em que a imaginação era necessária para alguma coisa.

Alheio a estas ponderações futurólogas, ele caminhava de volta para casa. O fazia sobre o meio-fio para testar o próprio equilíbrio, na beirada da calçada, pé-atrás-de-pé, com os braços ligeiramente abertos para servir de contrapeso para cada passo dado. Foi quando a viu, ali mesmo na canaleta da rua que encostava no meio fio. Preta, pequena, parecia de couro. Uma carteira no chão da rua. Levou sua mão esquerda até o objeto e o suspendeu para mirá-lo de perto. Uma carteira rechonchuda. Devia estar cheia de dinheiro.

Os meninos daquela época, mesmo que suas famílias fossem remediadas, não costumavam andar com dinheiro. Quando tinham algum, era pouco. Ele mesmo contava com a generosidade de seu padrinho vascaíno, dono da padaria São Januário, para ter liquidez de vez em quando e comprar uma pipa. Muito de vez em quando. No mais, ganhava uns doces que muito apreciava e agradecia. Abriu a carteira um quase desmaiou.
Havia ali um dinheiro incomensurável para os olhos de meninos. Uma grana preta, como dizia seu pai, ao comentar o preço das coisas caras, inclusive do Aero Willys bege que havia – com muito sacrifício – comprado uns anos atrás. Pois, na carteira havia uma pretura de grana danada. Além de documentos, santinhos, retratos três por quatro e uma figa de boa-sorte pequena. Nada disso lhe chamou muita atenção naquele momento, apenas o dinheiro cheiroso que havia lá, aquelas notas de cem cruzeiros novinhas que pareciam ter saído do banco sem ter circulado pelos comércios.

E agora? O que fazer? Aquele dinheiro daria para ele realizar todos seus sonhos infantis. Umas 10 vezes cada um. Poderia comer 10 quibes do Seu Abuche, da lojinha ao lado do hospital. Poderia comprar cinquenta times de botão. Poderia compra umas trinta cafifas, de vários tipos, arraia, peão, morcego. Caramba! Ele poderia até comprar uma bicicleta de marcha, vermelha, que tinham acabado de inventar e que era produto fino e que conferia aos seus pouquíssimos proprietários daquela vizinhança um status realmente elevado! Seu coração palpitava, sentado ao meio-fio, nestas conjecturas barulhentas e extasiantes que fazia.
Por outro lado, e é de sabença geral que a mente humana tem muitos outros lados, começa a ser aplacada sua excitação com ponderações de ordem moral. Seu pai era servidor público, austero e trabalhador. Repetia a ladainha da necessidade de honestidade e retidão na vida. E, para seus olhos de criança, exercia isso na plenitude. Falava e fazia, fazia e falava. Sua imagem forte aparecia naquele pensar, diante do seu achado, como uma trovoada repentina em dia de céu majoritariamente azul. Era errado ficar com o dinheiro. Instalava-se o conflito, um incêndio de Roma em sua cabecinha.

Tentou combater esse assédio da moralidade. Valia para aquele caso o velho adágio infantil-popular que dizia que “achado não é roubado, quem perdeu foi relaxado”. Era necessário culpar o proprietário de alguma forma para criar consolo para seu coraçãozinho. Não é certo um adulto andar perdendo as coisas. Aliás, para reforçar a tese de que o perdedor não merecia clemência, imaginou que o sujeito para ter aquela quantidade toda de dinheiro vivo na carteira deveria certamente ser rico e desnecessitar daquela quantia. Ficaria com o dinheiro.

Os sentimentos humanos são complexos e torrenciais. Não se pode fazer uma análise fria, destilando cada um deles em pipetas de laboratório. Vaidade, medo, excitação, tudo isso acontece ao mesmo tempo, misturado e batido na consciência, ao que se adiciona o grito constante do inconsciente. Uma confusão. Pois roncou o trovão da maldita moralidade novamente. Não se sabe se por medo de ser descoberto ou por real senso do dever cívico, nosso menino recuou da precipitada decisão de pegar para si o que era de outra pessoa. Levado à tentação extrema por seus primeiros instintos era dissuadido, lentamente, no decorrer daqueles longos minutos de meditação.

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