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Fortaleza

Carta a Antônio Sales

S ua memória é preservada, em Fortaleza, nas placas de um corredor que liga a Avenida Aguanambi, na região central, à Avenida Santana Júnior, rente ao cobiçado Parque do Cocó, uma reserva que margeia o rio do mesmo nome. O Instituto do Ceará é um santuário de sua produção intelectual impressa. Seu acervo particular, o hoje chamado Arquivo Antônio Sales, foi doado pelas mãos do seu amado sobrinho afim Pedro Nava — que em seu livro “Baú de ossos” afirma, citando você: “somos os arquivistas da família”. [ Pedro era filho de José Nava, irmão de Dona Alice, esposa de Antônio Sales].

Nava fez a doação em 1983, à Fundação Casa de Rui Barbosa, dando mais volume ao Arquivo-Museu de Literatura Brasileira. São documentos do século XIX e outros que mostram a formação da Padaria Espiritual, da qual temos uma maravilhosa foto exposta no acervo do Museu do Ceará — você alegremente sóbrio, embora sempre econômico na fala. Sua motivação para animar e formar a Padaria Espiritual, na Fortaleza daquele 30 de maio de 1892, era “fornecer pão de espírito aos sócios em particular e aos povos em geral”. Tudo muito nobre, afinal, ainda mais porque pão era matéria em falta. Para seu alívio, ainda bem que hoje estamos na Pátria Educadora, onde ‘pão espiritual’ não nos falta.

Soube que você recusou de Machado uma vaga na novíssima Academia — que você ajudou a fundar — devido a uma excessiva autocrítica; considerava-se péssimo orador. Ah, se nossos políticos tivessem um mísero milésimo dessa sua injusta autocrítica. Acredito que seu valioso patrimônio esteja em boas mãos, em lugar seguro, climatizado, com as proteções e cuidados que ampliem seu ciclo de vida. Acredito também que a digitalização do acervo esteja nos planos da Casa. Destaco, entre outros itens do Acervo, 1.321 documentos da sua correspondência Pessoal, 111 documentos da sua correspondência familiar, 18 documentos da correspondência de terceiros. Sorte que você escrevia do próprio punho numa época em que a expressão “cloud computing” era sequer uma ficção. Certamente, sua produção espiritual, prezado Antônio Sales, está mais protegido aí do que aqui, onde nossos chamadas bibliotecas públicas abrigam acervos em condições de precárias com o rara exceção dos chamados “livros raros”, melhor protegidos, ainda mais sob o olhar cuidadoso de uma ou outra guardiã, obstinada servidora. Você está muito bem desenhado nos estudo e pesquisas de Sânzio de Azevedo sobre a Padaria Espiritual. Ele bebeu direto na fonte do acervo guardado por Pedro Nava. Sânzio nos asserta que você “um dos vultos mais robustos da intelectualidade cearense, bem merecia maior renome no panorama da cultura nacional”. Sem dúvida.

Meu temor é mais rude. Temo que um dia algum vereador apresente “projeto de lei” deletando seu nome da avenida-corredor para homenagear um falecido mais recente. Tem sido assim, acho que mesmo contra a memória do homenageado. Tenho a certeza que Raimundo Girão preferiria ver “Aquidaban” nomeando a avenida. Seria lembrado em outro canto assim como Carlos Drummond de Andrade seria contra substituir o nome “Consolação” na rua paulistana — ideia que morreu no nascedouro depois de enorme gritaria. Mas meu caro “Salles”, agora com dois elles como grafava Nava, minha lembrança de hoje deve-se a uma cena invisível sob um viaduto que corta o espaço aéreo da sua avenida. Uma jovem mulher, em vestes pútridas dormia sobre papelões na calçada mínima entre a estrutura de concreto e o sempre congestionado corredor. Ao seu lado, o carro com a carga de metais velhos próprio dos catadores de lixo que habitam a paisagem desta Fortaleza de 2015. Ela foi “ave de arribação” abatida na cidade grande para onde, certamente, veio em busca de dias melhores. Você, certamente, ficaria chocado com a cena desprovida de humanidade, onde não há pão material, nem pão espiritual.

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