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Falta estrutura e apoio para a Nova Lei de Adoção

O juiz de Direito Francisco Jaime Medeiros Neto é titular da 4ª Vara da Infância e Juventude desde 2002, mas atua com a causa desde 1994. Em entrevista ao O Estado, o magistrado disse que o processo de adoção no Ceará evoluiu em 2010 e previu mudanças para 2011. A principal delas será a intolerância com a adoção dirigida. Jaime Medeiros explicou que o Ceará deveria seguir o exemplo do Estado da Paraíba. Lá, segundo ele, toda e qualquer mulher que procure a rede pública ou particular para exames de pré-natal, o Juizado da Infância e Juventude de João Pessoa é informado, independentemente do desejo dessa mãe de dar ou não a criança para adoção. O magistrado conta também que no Ceará, apenas 20% das crianças abrigadas estão disponíveis para adoção. Ele fala ainda sobre a aplicação da lei, adoção tardia, inter-racial, fiscalização nos abrigos e necessidade de melhor infraestrutura e apoio do poder público.

[O Estado] Que avaliação o senhor faz dos resultados de 2010 com relação à situação das crianças e adolescentes que vivem em abrigos no Ceará?
[Jaime Medeiros] Este ano tivemos uma mobilização nacional promovida pelo Conselho Nacional de Justiça para que tivéssemos os dados de todas as crianças e adolescentes em situação de abrigo. E nenhuma dessas crianças ou adolescentes deixaram de ter sua situação jurídica avaliada. Pela primeira vez houve esse contato próximo de toda a rede, diretamente com as crianças, dentro dos abrigos, o que nos pôs a par da realidade que estamos enfrentando. Essa mobilização já está desencadeando uma série de providências, por exemplo, alguns processos de destituição do poder familiar, que estavam há muito tempo parados já estão sendo movimentados. Aquelas crianças em que havia uma insistência prolongada de vinculação dela com a família já se está tentando fazer uma mudança de raciocínio em relação a isso. O que nos interessa é colocar essa criança em uma família, seja ela a família biológica ou substituta. O que nós não pretendemos mais é ver essas crianças alongadamente em uma situação de institucionalização.

[O E.] Então 2010 foi melhor que 2009?
[J. M.] Foi. Hoje eu tenho ao alcance das minhas mãos a situação jurídica de toda e qualquer criança abrigada. Houve uma cobrança maior e está sendo feita essa cobrança diariamente no sentindo de buscar o mais rápido possível um destino para essas crianças. É lógico que em alguns casos, nós sabemos, há crianças que não têm família, que foram abandonadas nas ruas, ou na porta de alguém, com problemas mentais, físicos, neurológicos, etc, que são postas como crianças que possivelmente não são alvos de adoção. Elas não estão no perfil dos pretendentes à adoção. Essas crianças, infelizmente, tendem a permanecer no abrigo.

[O E.] A Justiça prevê alguma medida para estimular a adoção tardia no Ceará?
[J. M.] Infelizmente na questão da adoção tardia, grupo de irmãos e adoções inter-raciais o que está havendo é uma mobilização publicitária. Essa mudança de mentalidade, de cultura para o nosso povo ocorre de forma muito lenta, mas o que podemos dizer, e está estatisticamente comprovado é que essas adoções vêm aumentando a cada ano. Este ano, nós tivemos adolescentes e um grupo de três irmãos que foram adotados. É algo que vem aumentando de forma que eu acredito que, em pouco tempo, nós tenhamos uma evolução dessa mentalidade, dessa conscientização de que a adoção é realmente é um ato de amor. As pessoas cada vez mais enxergam a adoção não como uma atitude que elas estão tomando para sua satisfação própria, mas para a daquela criança e adolescente.

[O E.] Qual é a sensação quando o senhor percebe que ajudou a formar uma família através da adoção tardia?
[J. M.] A nossa satisfação existe independentemente do tipo de adoção. A questão de saber que aquele ser humano agora está protegido, com todas as garantias e direitos assegurados, no seio de uma família nos dá uma sensação muito boa. Costumo dizer que a Vara da Infância e Juventude é o único local onde a porta do juiz se abre por uma pessoa que não está trazendo um problema e sim um sorriso, uma solução, um agradecimento. Lógico que ainda nos causa sadia admiração quando nos deparamos com adoção tardia, grupo de irmãos ou adoção inter-racial, mas infelizmente 90% dos pretendentes ainda colocam no perfil desejado criança de 0 a 2 anos, feminino e branco. Mas eu sempre digo: se hoje surge 90% é porque ontem era 99,99%. A partir do momento que as pessoas começam a ter contato com casas de acolhimento, com os abrigos, essa vontade de adotar parte até de uma troca de olhar com a criança, independentemente da idade, é algo inexplicável. São as sensações próprias do ser humano ao se deparar com outro ser e com ele se identificar. Então, esse contato é importante, e nós pensamos uma forma de estimular a sociedade a visitar os abrigos tendo sempre o cuidado de não deixar essas crianças expostas, para que ali alguém vá por mera curiosidade. É importante que as pessoas procurem o Juizado da Infância e Juventude e estabeleçam seu perfil. Hoje a lei exige que os pretendentes à adoção façam o curso de preparação para esse momento e isso tem gerado bons resultados.

[O E.] Alguma história o marcou?
[J. M.] Sim, nesse caso especificamente, a pretendente trabalhou por uma época em um abrigo, na mesma época em que esse jovem ainda era criança. Depois ela foi morar fora e ao retornar foi visitar o abrigo e viu que o menino ainda continuava lá. Então ela amadureceu a ideia e resolver adotá-lo. Sempre temos casos emblemáticos, que marcam. É uma área muito sensível, que envolve uma série e profissionais, todos com a sua carga de sentimentalidade e sensibilidade. O que torna mais difícil ainda esse ângulo de visão é a adequação às determinações da nova lei de adoção. Ainda resistimos um pouco à lei, ainda admitimos aquelas adoções dirigidas, mas isso tende a ir acabando. Chegará um dia em que não mais iremos tolerar adoção dirigida. Uma vez que a criança seja exposta ou que a mãe não queira criá-la, essa criança obrigatoriamente terá de ir para o abrigo, ser cadastrada, e disponibilizada para adoção. Ainda é grande o número de pessoas que vêm aqui e dizem: “colocaram essa criança na minha porta e eu quero criar”. Ainda estamos processando com certa tolerância esses casos. Mas não é justo que continuemos chancelando esse tipo de adoção e os casais que aguardam na fila fiquem esperando, vendo aqueles que nunca se cadastraram nem fizeram curso, muitas vezes de modo transverso conseguem uma criança e o Judiciário ainda chancele esse tipo de adoção. O grande viés de 2011 para frente será a nossa mudança de perfil com relação a essas adoções, buscando cada vez mais nos adequarmos ao que determina a lei de adoção.

[O E.] Na prática, que avaliação o senhor faz da aplicação da Nova Lei de Adoção?
[J. M.] No começo, ela chocou um pouco, principalmente quando determinou que em momento algum a adoção poderia ser feita se o casal ou a criança não tivessem cadastrados, se não fosse feita a tentativa de manutenção de vínculo com a família. Mas principalmente o que ainda estamos muito deficientes é que não contamos com o apoio do poder público competente no que diz respeito ao acompanhamento dessa mãe desde o pré-natal.

Infelizmente, ainda vivemos na época em que uma mãe chega ao posto de saúde para fazer o pré-natal, manifesta o seu desejo de dar a criança para adoção e esses profissionais, ao invés de informarem e encaminharem essa mãe para o Juizado da Infância e Juventude ficam muitas vezes agenciando essa situação. Ainda é aquela coisa alinhavada, suspeita e que sempre traz dúvida e falta de legitimidade ao processo de adoção. A nova lei chocou um pouco também porque pensávamos, por exemplo, “será que vamos ter coragem de tirar de um casal uma criança que está com ele há cinco meses?”. No começo, tínhamos certeza de que isso não seria possível, mas hoje vemos que essa será uma das nossas metas para o próximo ano. Esse tipo de tolerância não será mais admitida. A gente pergunta: o que essas pessoas vão ensinar para essa criança: como burlar a lei? Como furar a fila?

[O E.] A lei tem sido aplicada?
[J. M.] Não. Eu vejo que a lei está sendo aplicada no que diz respeito ao seu aspecto administrativo, nos demais, não. Pelo menos não no Ceará. Na Paraíba, por exemplo, toda e qualquer mulher que procure a rede pública ou particular para exames de pré-natal, o Juizado da Infância e Juventude de João Pessoa é informado, independentemente do desejo dessa mãe dar ou não a criança para adoção. Isso possibilita facilidade na investigação de eventual criança que esteja sendo exposta. Toda a rede de saúde lá está ligada com o Juizado da Infância de forma a avisar imediatamente sobre aquela mãe que manifestou o desejo de dar o filho para adoção. Assim eu entendo como um sistema que está funcionando razoavelmente bem. Aqui ainda não temos esse padrão, essa atitude e infelizmente não cabe ao Judiciário providenciar isso. Cabe solicitar, pedir atenção, mas cabe à rede pública, em sua grande maioria vinculada ao poder executivo adotar esse tipo de comportamento. É necessário que o Estado faça um programa de atendimento, onde esteja incluída a necessidade de informação ao Judiciário e capacitação desses profissionais para trabalhar com esse tema. O nosso grande déficit com relação à lei é a falta de capacitação de pessoal para trabalhar com ela. A lei de adoção é manejo multidisciplinar, que envolve vários ramos da ciência e do serviço público e todos esses profissionais têm de ter o mesmo nível de conhecimento para que as operações possam ser realizadas.

[O E.] Por que ainda existem crianças que ficam mais de dois anos nos abrigos?
[J. M.] Não é raro alguém dizer que são mais de 600 crianças abrigadas, quando na realidade nós tivemos isso estatisticamente comprovado, só 20% dessas crianças estão disponíveis para adoção. Muitas estão por uma situação familiar transitória, algumas porque a mãe ou o pai estão cumprindo pena, outros porque foram vítimas de algum tipo de violência em casa e enquanto não cessar essa violência não podem retornar. Há uma série e fatores para o abrigamento dessas crianças e adolescentes.

[O E.] Alguns casais ainda optam pela adoção fora dos procedimentos jurídicos, sob alegação da morosidade do processo. Por que é importante o casal seguir as orientações da Justiça?
[J. M.] A queixa desses casais para nós não tem muita importância, pois a nossa preocupação é com a criança. É claro que muitos deles procuram ser pais e não avós, mas ainda há uma relutância grande principalmente das equipes, que ao vislumbrar qualquer vínculo que a criança tenha com a mãe biológica, de trabalhar esse vínculo. Muitas vezes, a mãe deixou aquela criança no abrigo, mas não quer entregá-la para adoção, e a lei determina um trabalho de manutenção de vínculo dessa criança com a mãe. Se em muitos casos, por exemplo, essa mãe não tem onde morar, então vamos buscar uma solução, vamos inscrever essa mulher em um programa social. Alguns mais veementes com relação ao tema, dizem até que o Estado ou Município deveriam alugar uma casa para ela ficar com o filho até que outro órgão providenciasse uma moradia, pois se a questão é isso, vamos tentar ver o que fazer.

Muitas vezes não depende da mãe, depende do Estado ou do Município. Então a lei dá um prazo de dois anos para se tentar restabelecer esse vínculo. Pela Constituição, o Estado deve garantir aquela convivência familiar, e se o Estado não faz absolutamente nada, me parece violento fazer essa ruptura da criança com a mãe, por questões financeiras. Somos favoráveis que esses laços só sejam rompidos quando a convivência é prejudicial para a criança, por exemplo, quando a mãe insiste em explorar essa criança nos sinais de trânsito, tráfico de drogas, com apelo à sociedade para conseguir algum fim ilícito. Buscamos cessar esse tipo de situação, mas nem sempre são exitosas e isso acarreta alguma demora.

[O E.] Mas o senhor acha que a alegação da família de não ter condições financeiras é realmente um motivo para deixar a criança em um abrigo?
[J. M.] Não. E é por isso que eu acho que essa alegação, muitas vezes, está disfarçando um desejo de realmente não criar. Em muitos casos, até hipoteticamente se resolvendo esses problemas ainda assim ela não iria querer. Eu não tenho um conhecimento técnico científico para tirar as próprias conclusões de muitos casos. Tenho que aguardar um estudo psicossocial que irá me relatar o que realmente está acontecendo. Há, por exemplo, aquela mãe que nós intimamos para dar o consentimento da adoção em audiência e ela diz: “eu não concordo, resolvi criar meu filho”. E quando mostramos que estamos devolvendo a criança, ela volta atrás porque não quer a responsabilidade de dizer na frente de alguém que está dando o filho. Ela prefere que alguém tome a responsabilidade por ela. Há situações em que a realidade está mascarada, por algum fator. É a equipe inter e multidisciplinar que quebra essa pseudorealidade e traz a real situação.

[O E.] A Justiça está adotando alguma medida para diminuir o tempo de permanência das crianças nos abrigos?
[J. M.] Não envolve só o Judiciário. Processualmente falando nós temos três figuras que atuam nesse processo: o juiz, o Ministério Público e a Defensoria Pública, sem falar nos diversos outros profissionais, que colhem informações e fazem relatórios. Há bem pouco tempo quando questionado sobre o que faltava para se melhorar a situação adotacional, de garantias de direitos dessas crianças eu dizia “está difícil porque ninguém tem compromisso com nada, ninguém tá nem aí para essas crianças, absolutamente nem aí”. Infelizmente, era essa a realidade. Depois das audiências concentradas se tentou impulsionar a preocupação sobre essas crianças e temos notado certa movimentação positiva no sentido de que sejam resolvidas essas situações. Houve, pelo menos da minha parte, um despertar para acompanhar bem mais de perto, conhecer a criança, o casal, o adolescente, para tentar obter informações que nem sempre só o papel me traz. Houve uma pequena melhora no que diz respeito à qualidade do trabalho de todos os profissionais envolvidos nesse processo, mas ainda acho que alguns empurrões devem ser dados. Vez ou outra, dependendo da situação, me volta aquele sentimento de que desde o porteiro lá do abrigo até o desembargador do Tribunal de Justiça, todas as pessoas envolvidas, muitas vezes, há um total virar de costas para a nossa realidade. O Juizado não tem a atenção que deveria ter.

Nós somos quase relegados a segundo plano, como se fôssemos profissionais de segunda ou terceira categoria, porque os nossos processos não envolvem poder econômico, volumes gigantescos de dinheiro, de recursos, etc. Nós somos esquecidos. Faltam equipes e profissionais. A lei diz que nesse tipo de processo é preciso ter um estudo social e nesse longo caminhar dentro da Infância e Juventude não temos sequer um psicólogo. Na realidade da 4a Vara, não temos uma assistente social, um pedagogo. Fui conhecer e trabalhar pela primeira vez na vida com um defensor público este ano. Então, é uma área que ainda reclama muita atenção. Infelizmente, a sociedade acha que não há uma grande preocupação nossa em agilizar a situação dessas crianças, eu diria que esse reclame nós fazemos com relação àqueles que nos são superiores. Nós sentimos a mesma carência, a mesma falta de cuidado com o nosso trato. Nós matamos um leão por dia para tentar resolver alguma situação.

[O E.] O trabalho psicossocial feito por assistentes sociais, psicólogas e pedagogas tem se mostrado fundamental para o processo de adoção, sobretudo no que diz respeito à orientação e acompanhamento aos casais. Que avaliação o senhor faz desse trabalho?
[J. M.] São meus pés e minhas mãos. Eu estaria totalmente incapacitado para as minhas funções se não fosse o trabalho das equipes multidisciplinares, tanto dos abrigos, como do Juizado. Elas são o meu grande motor de informação. É baseado nos relatórios delas, na visão dessas equipes, que eu vou pautar minha decisão, porque elas melhor do que ninguém estão a par da situação dessas crianças.

[O E.] Se o senhor pudesse pedir algo de presente ao “Papai Noel,” o que seria?
[J. M.] Que Ele desse um jeito de as crianças continuarem acreditando que Ele existe. E que essa crença demorasse o máximo que fosse possível. Enquanto sonho, a criança que está abrigada, como a que está no seio de uma família, ou a que está perambulando pelas ruas, todas elas têm esse direito comum, que é o de sonhar. Então pediria ao Papai do Céu para cada criança uma família carinhosa e cuidadosa!
 

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