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Criança precisa de carinho hoje

Sávio Bittencourt é um entusiasta da adoção. Pai, ativista, escritor e procurador de Justiça no Rio de Janeiro, Sávio fala sobre os grandes desafios da adoção no Brasil e os caminhos para quebrar preconceitos e diminuir o número de crianças sem família.

O ESTADO | Por que tantas crianças ainda passam a infância nos abrigos, sem ter direito a uma família?

Sávio Bittencourt | O que ocorre é que nós estamos numa mudança de paradigma, de entender que a criança é o principal sujeito de direito das relações que vivência porque ela é um ser em formação. Ela precisa de carinho e ela precisa de carinho hoje, ela não precisa de carinho daqui a dois meses, daqui a três meses, daqui a um ano e meio, que é o prazo máximo de abrigamento que o ECA traz. Mas já é muito porque tá comprovado cientificamente que as habilidades principais se formam naqueles anos iniciais da vida da primeira infância. E nesse período é justamente o momento que nós deixamos ela nas instituições esperando que a sua família biológica de origem se aprume para recebê-la e ama-la.

OE | Até que ponto deve ser feita a tentativa de reintegração?

S. B. | A reintegração ela só pode ser tentada quando é visível que essa família tem condição de se recuperar. Não pode ser tentada a qualquer custo e a custo da criança ser novamente vitimizada e devolvida ao abrigo como ocorrem várias vezes. Essas tentativas elas tem um erro que é pressupor que o vínculo biológico vai influir no amor das pessoas, e isso efetivamente não acontece em todos os casos.

Então portanto nós estamos lidando com pessoas que são pais disfuncionais, que não tiveram condição de manter essa criança consigo. E que por algum motivo concreto abandonaram ou mau trataram. Isso precisa ser investigado e tratado. Mas se essa investigação e esse tratamento levarem muito tempo, você perde a infância da criança e provoca nela um sofrimento agudo, profundo em nome da recuperação de adultos. O que se propõe é que a reintegração seja trabalhada naquelas hipóteses em que a institucionalização seja feita por motivos que permitam pressupor que a família consiga ser recuperada nesse período. Mas não quando você analisa um grau tal de desorganização, de comprometimento, de comportamento absolutamente inadequado pra paternidade, pra maternidade, pra assumir o cuidado que é necessário. Não basta dizer que ama tem que traduzir esse amor em dados concretos. Se isso não é realizado, se isso não é crível e não é provável que essa família se aprume num curto espaço de tempo essa criança precisa ser colocada em adoção para outra família.

OE | Em que casos deve-se tentar a colocação da criança em família extensa?

S. B. | O que a lei diz é que esse parente que vai receber a criança tem que ter com a criança vínculos de afetividade e afinidade, ou seja, tem que haver uma convivência com a criança preexistente ao tempo do abandono, não é para buscar parentes longínquos ou perguntar para todos os parentes se querem ou não querem a criança. Pois a criança não é propriedade de ninguém, ela é uma pessoa, só se coloca criança com parente em que a criança se sinta segura, que  a criança já tem afinidade com aquela pessoa, já gosta daquela pessoa e isso vai minimizar o impacto da separação do seu núcleo de origem.

Em outra hipótese, para criar vínculos, isso não está escrito na lei, isso é uma injustiça com a criança porque a criança vai ficar numa guarda com parentes sem ser adotada, se o parente mudar de ideia vai institucionalizar a criança. Quando você tem uma solução que é a adoção, que vai dar direito dela ser filha, ser herdeira, ter o nome, ser amada, ser acarinhada, ser integrada definitivamente numa família de pessoas que já foram verificadas e estão habilitadas. Então portanto a adoção não pode ser preterida pela família extensa. Só se houver um convívio prévio com algum dos parentes que justifique a colocação da criança. Esse é um erro que se comete hoje. Não está escrito na lei. As pessoas interpretam erradamente porque tem a ideia que a criança é uma coisa que pertence a sua família de origem mesmo a extensa.

OE | O aumento do número de psicólogos e assistentes sociais na rede proteção a criança pode ajudar a diminuir o tempo de permanência nos abrigos?

S. B. | É óbvio que a estrutura pode ser melhorada e é óbvio que todas as instituições podem investir mais em infância e juventude obedecendo a constituição federal que diz que a criança é prioridade absoluta. Mas o número de psicólogos trabalhando na vara não vai criar família amorosas e cuidadoras de uma hora para outra.

E o que nós estamos tratando aqui são pessoas que tem problemas profundos e esses problemas são de tal ordem que ela não consegue exercer o afeto, se existe esse afeto não é de forma que esse afeto se transforme em cuidado. Então você pode aumentar, colocar mais psicólogos, os processos podem andar mais alto etc. Mas num primeiro momento em que o técnico tem contato com a família ele já tem uma noção muito clara de quais são os problemas, qual é o modo de vida dessa família, quais são as práticas que estão ali, como que essa família se estrutura, qual o tipo de disfuncionalidade que existe ali, fazer a pressuposição que essas pessoas podem alcançar um patamar de comportamento que seja um ambiente razoável para criança viver muitas vezes é fazer a análise de uma possibilidade muito improvável. E se erra a favor do adulto e se erra contra a criança. E aí a criança perde a sua condição de criança, vai crescendo no abrigo, aumenta o seu trauma, abaixa sua autoestima, criam-se dificuldades cognitivas para no final dizer agora ela tem que ser adotada. E se perde também a possibilidade de coloca-la antes desses traumas todos, numa família que vai ama-la.

OE | Então o problema maior não está no perfil procurado pelas pessoas que querem adotar?

S. B. | Não. Depois de esperar anos pela improvável recuperação da família biológica, se acusa o adotante brasileiro de não querer crianças grande ou crianças com problemas. Quer dizer, é claro que você pode ampliar o perfil do adotante brasileiro e onde há os grupos de apoio a adoção esse perfil é aumentado, mas a resposta que tem que ser dada é por quê que a criança não é disponibilizada para adoção antes ou é reintegrada antes, se ela não pode ser reintegrada com segurança em curto espaço de tempo ela tem que ser adotada e ideologicamente se transformou a adoção nas últimas possibilidade fazendo que os abrigos continuem com as crianças lá e cheios.

OE | Vemos casos de repetidas reintegrações com a família biológica, mesmo quando não há indícios de que a situação vai mudar, apenas para saber se vai dar certo. Isso pode ser feito? Não é traumatizante?

S. B. | É uma irresponsabilidade fazer uma reintegração familiar para testar uma chance para a família, pressupondo que o vínculo biológico daquela mãe vai fazer com que ela trate a criança bem. Quem trabalhou nas crianças mais velhas que vão para adoção internacional e acompanha a vida daquela criança na instituição percebe que cada processo daquele, as crianças foram reinseridas duas ou três vezes. Então é um abandono que perdura no tempo, ele protrai no tempo, a criança é abandonada várias vezes porque se faz teste drive com a criança com uma família de origem que se pressupõe que o comportamento vai mellhorar, se perde para o comportamente melhorar, a despeito de faltar poltica pública e as vezes falta política pública aqui e acolá. É injusto dizer que a pobreza é definidor do abandono porque 99,9 dos brasileiros pobres criam seus filhos com muita dignidade.

Hoje uma mãe que entrega uma criança com zero ano de idade, dois meses de vida para um abrigo e visita uma vez por mês, pode manter a vida inteira a criança no abrigo, vai ser sempre mantida a esperança de que aquela mãe vai um dia querer aquela criança. Criança não pode crescer em abrigo. Em nome dessa ideia de que a criança deve viver no seu núcleo familiar de origem que é acertada se condena a criança a viver em nenhum lugar e não ter pertencimento nenhum, e não ter identidade vinculada a ninguém. E o que extremamente cruel.

OE | Agora falando das adoções tardias, de crianças maiores de oito anos. Hoje existem iniciativas para que essas crianças sejam vistas pela sociedade. Você acredita que o interessa da criança de ter uma família é mais importante do que a proteção a imagem?

S. B. | A proteção ao direito de imagem da criança sempre se deu no sentido de preservar a sua privacidade, mas essa proteção teve um efeito colateral extremamente perverso que foi escondê-las pra debaixo do tapete da socidade. Então algum tipo de exposição da imagem para que a sociedade saiba que ela existe e possa se apresentar como solução para a vida dela algum tipo de exposição vai ser necessária. Com todo cuidado, nós temos que ter visitas, nós temos que ter programas que prevejam a exposição das crianças, não exposição pra adotar como se elas fossem produtos, mas a integração delas numa comunidade para que elas possam ser vistas. Mas é a criação de um espaço de convivência onde as crianças disponíveis para a adoção e as crianças institucionalizadas possam ser vistas e possam interagir coma sociedade civil e a sociedade civil e a sociedade civil possa conhecer suas histórias porque a solução “vamos mantê-las escondidas” só beneficia a situação atual que é a sua invisibilidade.

OE | E essas iniciativas de integração com a sociedade, com eventos feitos para as crianças, é importante para promover encontros entre crianças que precisam ser adotadas e pessoas que querem adotar?

S. B. | Você pode idealizar ter um filho até seis meses, dois anos etc. E se apaixonar concretamente por um menino de outra etnia que você conheceu porque ele tinha um modo peculiar de olhar, uma forma de sorrir, quando você se relacionou com ele que te encantou, que te tirou daquela ideia preconcebida e te mostrou a tolice das ideias preconcebidas. Nós temos que permitir na ordem jurídica os encontros de amor, é necessário que a ordem se adapte para permitir os encontros de amor porque a partir dos encontros que se formam esses relacionamentos que nós queremos para as crianças.

Por Gabriela de Palhano

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