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Fortaleza

Aquela foto do nosso beijo

Um instante qualquer, sem pose e sem pretensão de pose, clicado por um fotógrafo atrevido, invasor de privacidade. Uma foto roubada da realidade pungente, do cotidiano mediando, de uma figura vulgar. Eu. Eu, o comum dentre os comuns, destacado por ser tão ordinário, tão previsível, pessoinha perdida na massa, anônimo da história do mundo, da história do país, da história da cidade, alheio às fofocas da minha rua. Um eu que acorda, come e dorme. Gente que nasce e morre.

Um Eu com letra minúscula: eu.
Pois então, como se pode compreender tal fotografia? Não sou a menina nua chorando no horror da guerra. Não sou o soldado que cai morrendo na guerra civil espanhola. As belezas mundanas das atrizes, das modelos, nada disso pertence a mim. Não há uma bola em meus pés, tocada para uma rede de felicidade e grito desabafado do gol. Os votos do povo não recebi, jamais desfilei em carro aberto, com a mão de aceno abanando. Não fiz o discurso mais virulento, do alto da tribuna das denúncias, não fui o arauto das mudanças. Da passeata de bandeira em punho, não fui, nem tive notícia.

Do canto mais bonito, erro a letra e entabulo um assovio. Do trabalho mais duro canso nas primeiras marteladas. Dos sonhos que tenho, não cheguei nem na metade. O que quer comigo este perpetuador de fração de segundos? O que deseja esse monstro eternizar num clique automático? Prender o tempo que passa, pretensão sublime e tola. O artista da nostalgia insiste em perpetuar o finito, para que o que agora é um nada, algo seja. Lá está ele, chafurdando na realidade sua obsessão bisbilhoteira. O que quer comigo?

Vejo a foto agora. Vejo meus olhos fechados, meu rosto inclinado por traz de ti, te abraçando, com a minha boca em bico feito encostada a sua bochecha. Você olhando serena para a lente com meio sorriso estampado, como quem se sente importante, ainda que tímida. Posso sentir seu perfume de alfazema, que de tanta infância me lembra, com meu nariz colado no teu rosto, enquanto a boca te beija. A textura macia da sua pele mulata me adoça os lábios. Tudo isso naquele segundinho de beijo dado.
Então é isso. Finalmente entendo.

Da minha existência comum nada se impõe à eternidade. Os feitos, as vitórias e derrotas, nada, nada. O fotógrafo não registrou a minha existência, o meu corpo. Tão pouco se preocupou com minha falta de nobreza, com meus gestos comuns. Ele tirou dali, daquele momentinho, apenas o que eu sinto por você. O que é extraordinário e que vale ser lembrado, o nosso beijo espontâneo, sem preparo e sem previsão. Aquele artista folgado, ladrão da vida alheia, fotografou sem licença ou permissão apenas e tão somente o amor imenso que eu sinto por você. Bendito seja.

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