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Fortaleza

Quando eu gostava do jardineiro

Eu tinha uns seis anos de idade. Menino-pé-descalço, no quintal lá de casa, caçando o que fazer, no tempo imensurável da infância. De vez em quando vinha um jardineiro ajeitar as plantas e cortar a grama. Minha mãe dava umas coordenadas gerais e o sujeito passava o dia ali com uma tesourona na mão aparando o gramado, num creque-creque-creque sem fim. Como eu era filho temporão e só tinha irmã grande com todos aqueles afazeres apressados dos que já são adultos, vivia numa casa de uma criança só, sem grandes movimentos. Essa meia solidão infantil me obrigava a descobrir diversões individuais, jardim adentro, estimulando muitos mundos fantásticos, de batalhas e romances, que me vinham socorrer e fazer companhia.

A presença do jardineiro era, então, uma interessante novidade que me brindava com uma possibilidade de prosa, uma relação concreta para além dos meus mundinhos infinitos. Mal ele chegava, mesmo durante a preleção que a minha mãe fazia para explicar direitinho o que ela queria com as plantas, em já estava ali em pé querendo puxar assunto. E como eu tinha assunto. Menino não tem vergonha de si, fala o que imagina, conta sonhos e invenções. Menino pergunta sem cerimônia qualquer coisa que se lhe pareça interessante saber. E eu era assim, destravado e destabocado. Entabulava a conversa, perguntava, inventava, falava, enquanto o jardineiro ia cuidando de tudo.

Chamava-se Seu Joaquinzinho. E eu o tinha na conta de um dos meus melhores amigos. Só por aquele proseio uma vez por semana. Uma vez, para dar prova deste imenso apreço, peguei uma das pedras brancas que minha mãe usava para ornamentar os canteiros, circulando-os com elas, e a dei de presente ao meu amigo do peito. “Toma, Seu Joaquinzinho, um diamante. Leva este para o Senhor que aqui em casa já tem um monte”. Ele, já bem desgastado pelos anos e por um hábito que na época eu não atinava, sorriu com os olhos no rosto enrugado, colocou a pedra – que hoje sei não ter valor algum – na sua bolsa, e me disse que a guardaria no seu cofre. Fiquei muito contente por ele dar ao meu diamante o valor com que os sonhos merecem ser acolhidos.

Pois um dia trocaram de jardineiro. Me disseram que Seu Joaquinzinho andava combinando e descumprindo o combinado e, como dizia meu avô Português, “o que é combinado não é caro”. Fiz amizade com seu sucessor também. Mas sentia muita pena do Seu Joaquinzinho quando o via passar pela rua, às vezes ligeiramente cambaleante, com a fala meio enrolada. Sentia também falta de sua cumplicidade com minhas historinhas mirabolantes, minhas guerras contra o mal e de poder falar da menina que eu gostava na escola, assunto sério e confidencial, coisa que só a ele havia confiado. Sentia saudade do Seu Joaquinzinho.

Depois que a gente cresce, extinta a espontaneidade da nossa essência, se passa a vestir roupas mais imponentes e, com elas, armaduras emocionais que nos distinguem dos outros. Vemos antes nossas diferenças e, só com muito esforço consciente e determinado, alguma semelhança, sobretudo quando o outro é de uma classe social distinta. Sinto saudades do Seu Joaquinzinho. Sinto mais saudades ainda de um certo menino falante, de uns seis anos, que enxergava toda a gente com amor.

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