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Fortaleza

Vientone

Era ele um velhotinho bem simpático. Calvo, escassos cabelos brancos laterais, quase sempre ligeiramente desgrenhados. Parecia ser alto e estava bem gasto pelo tempo: apesar de ter setenta e poucos anos as marcas da vida se faziam presentes em sua fisionomia. Não que fosse um velho encarquilhado, não. Simplesmente parecia mais velho do que realmente era, destas pessoas que se entregaram com sofreguidão à luta de cada dia de tal forma que, no amanhã, aparentavam o passado.

Esse era o nosso homem. Sua simpatia era combinada com uma postura elegante, de fidalgo do interior, que diz bom-dia aos desconhecidos, mas sem se esborrachar em agrados exagerados com as pessoas. Matinha uma pose serena, um tanto áustera, de homem-de-bem-chefe-de-família. Nada de gestos bruscos ou gargalhadas em público. Fazia da simplicidade algo fino e tocava a vida em frente, entre a lida das tarefas e as tertúlias familiares. Não havia grandes ambições, a vida de professor de química lhe bastava, sem metas mirabolantes, sem planos genais. Seu objetivo era viver, e só.
Fumava. Fumava o “continental” sem filtro. Quando começou a fumar, ainda jovem, se sentia poderoso ao tragar gostosamente a fumaça quente e bafejá-la num grande sopro demorado. Continuou fumando depois que este glamour encantador se foi, pela força do hábito. Gostava de contar histórias, de viagens de mascates com seu pai português de Viseu. Contava as passagens que vivera e as que não vivera e só tinha ouvido dos outros, mas todas elas com tal vivacidade que quem ouvisse acreditaria que tinha participado de cada uma delas. Prendia atenção dos ouvintes, fazias gestos teatrais, adjetivava as ocorrências, e a história seguia seu curso de rio sinuoso sertão da memória a dentro.
Ainda pelos cinquenta anos começou a ter uns probleminhas de audição que o atrapalhavam um pouco em sala de aula. Acabou, com o agravar do quadro, preferindo se integrar ao setor administrativo do colégio, onde sua surdez parcial era menos incomodativa. Apesar de sentir um pouco a falta da agitação dos alunos, o conforto do ar-condicionado da secretaria e a facilidade do trabalho que se lhe haviam atribuído concorreram para sua rápida adaptação. Virou o chefe da burocracia escolar e era tradado de Inspetor, o que lhe agradou muito, embora não o confessasse em público.
Em seu circo familiar todos foram se acostumando com sua situação: paravam para a escutar suas histórias, que agora eram praticamente gritadas, e interagiam com ele também aos berros para que fosse possível ouvir. Já não ligava para novela, nem para filmes, só se interessava pelo “jornal falado”, que passava por volta das sete e meia da noite. Este momento era solene: sentava-se ao lado da televisão, dela distante uns dez míseros centímetros, colocava a mão na orelha esquerda, que ainda escutava um pouco, e a mantinha empurrada ligeiramente para frente, numa posição de quem ouve um segredo em cochicho. E assim passava estoicamente durante todo o jornal degustando as notícias do Brasil e do Mundo.
Uma de suas filhas, também professora, preocupada com a surdez do pai, resolveu comprar para ele, mesmo tendo-lhe custado os olhos da cara, um novíssimo aparelho auditivo Vienatone, recém lançado, com propaganda na TV e tudo. Foi um dia de grande festa na família, depois de 10 anos de razoável isolamento, o velho poderia ouvir e se relacionar integralmente em todas as ocorrências e conversas. Foi com grande expectativa que esposa, filhos e netos acorreram à sala para ver a inauguração do “vienatone” do vovô.
O aparelho constava de um auricular com fio que se ligava a uma caixinha de metal que o usuário colocava em algum bolso da camisa. Naquela época não se fabricavam coisinhas tão pequenas como hoje em dia. Pois o velho, sorrindo doce e elegantemente, com seu ar de diplomata sem embaixada, colocou com suavidade o auricular e ligou o aparelho, para delírio dos presentes, crianças em algazarra, adultos em festa.

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