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Violência doméstica: pesadelo constante no dia a dia de mulheres no Ceará e no Brasil

Levantamento nacional traz Estado na 14ª posição no crime de ameaça e 11º nos de stalking e violência psicológica. Cearenses relatam anos de dor e agressões

Por Kelly Hekally

Estão previstos na Lei Maria da Pena cinco tipos de violência doméstica e familiar contra a mulher: física, psicológica, moral, sexual e patrimonial / Foto: Dalila Lima / O Estado

Quando conheceu o homem com quem conviveria pelos próximos 13 anos, nem de longe Luciana* imaginou que aquele seria o algoz de sua vida. A relação entre sentimento pelo seu hoje ex-marido e a dependência emocional fizeram com que a vítima esperasse mais de uma década para se decidir pelo rompimento. A relação, após quatro anos, quase tirou sua vida, aos 22 anos.

“Ele ligou para os meus pais e disse que me mataria. Meus pais foram onde morávamos e me tiraram de lá. Meu filho, na época, tinha dois anos”, relembra a primeira grande agressão física. Divorciada há 24 anos, Luciana* conta que o casamento foi dominado por mudanças repentinas de humor e insegurança do ex-marido, entre outros comportamentos.

“Naquela época, se uma mulher apanhava, ainda era questionada da razão, como se ela tivesse culpa”, comenta ao sinalizar esse como um dos motivos para demorar a se divorciar. No início do casamento, pontua, o ex-marido justificava as agressões como efeito da bebida alcóolica.

“Ele se vitimizava, se ajoelhava pedindo desculpas ou dava razões espirituais. Recuei por conta do meu filho, e ele prometeu mudar. De fato, ele passou uns dois anos buscando conquistar minha confiança, frequentando a Igreja, mas sempre com abuso, me colocando para baixo, menosprezando. Depois de um tempo, ele voltou a me agredir. Eu sabia que uma separação seria muito complicada, mas acabei saindo de casa na marra”.

A perseguição, relembra, ocorreu de maneira ferrenha por seis anos após o fim do relacionamento. “Cheguei a achar que não tinha jeito para mim”. O ex-marido foi morar em outro estado, o que deu a Luciana* um respiro temporário, mas as agressões presenciais, com ofensas e outros tipos, voltaram a acontecer pouco tempo depois. “Ele alugou um apartamento muito próximo ao nosso e usava uma luneta para nos espionar. Ia para a porta da casa dos meus pais, ligava para o meu emprego, me perseguia na rua, dizia que se eu não ficasse com ele eu não seria feliz com ninguém. Tentou me enforcar também. Desenvolvi pânico e ansiedade”.

“Hoje, não quero relacionamento tóxico e agressão. Minha busca está em outros objetivos, profissionais e de família. Sinto-me mais forte. Nunca levei isso a público, mas sinto que estou pronta e que chegou o momento. Se hoje falo sobre isso é por achar que posso estar ajudando alguma mulher que pode sair de uma situação assim. Esse tipo de gente não tem cura: não tem amor que dê jeito”.

A história contada pela mulher hoje com 55 anos encontra semelhanças na de Vitória*, de 37 anos. “O perigo da relação abusiva começa quando a vítima acha que ‘não vai evoluir’ para uma violência ou que não vai acontecer uma violência grave ou fatal. Eu fiquei casada durante seis anos com uma pessoa que sempre deu sinais de agressividade. Subestimei todos os sinais e podia ter morrido”, alerta.

Vitória* relembra que, enquanto era espancada, pensava que daria o fim na relação. Quando denunciou pela primeira vez, defende, começou “a quebrar o ciclo”.

“Eu sentia tantos sentimentos ruins, tanta raiva, tanta indignação e inconformidade, que tinha medo de sentir aquilo pra sempre. A violência não termina quando acaba. Só o tempo, rede de apoio e muita terapia para ajudar a melhorar o cenário do lado de fora e de dentro”.

PELO CEARÁ E BRASIL
Ambos os relatos podem ser identificados nas vidas de milhares Brasil afora, mostra o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024, que evidencia que, em 2023, os índices de violência contra a mulher cresceram no Brasil, em comparação a 2022.

O número de ameaças, por exemplo, saltou de 668.355 para 778.921. O crime de stalking (perseguição) saiu de 57.294 para 77.083 casos, e o de violência psicológica de 28.771 para 38.507. No Ceará foram 17.013 de ameaça em 2022 e 18.209 em 2023, total que deixa o Estado na 14ª posição entre os estados e o Distrito Federal.

O de stalking passou de 1.447 para 1.812, e o de violência psicológica de 883 a 1.074. Ambos os recortes põem o Ceará no 11ª lugar do ranking. O Estado, contudo, teve redução em lesão corporal dolosa, com 772 em 2022 e 503 em 2023, e de tentativas de homicídio de mulheres e de feminicídio: 324 em 2022 e 315 em 2023, e 102 em 2022 e 97 em 2023, nesta ordem.

Todos os números utilizados pela reportagem são os absolutos. O estudo explica que as taxas são calculadas a partir de dados de boletins de ocorrência e de dados de acionamentos das polícias militares. Presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), a advogada Mabel Portela explica que a violência doméstica está caracterizada em cinco tipos e que acontecem “entre 4 paredes”.

“Basta dar um empurrão, pegar com força no braço, acusar de que a mulher está com outra pessoa, xingar, dizer que ela não é capaz de realizar algo etc”, exemplifica as atitudes tipificadas como violência doméstica.

Para a jurista, com o empoderamento de informações, as mulheres estão denunciando em maior volume quando são vitimadas. Mabel argumenta que a violência contra a mulher encontra resposta, em parte, na cultura machista e narcisista perpetuada entre homens e considera que, em regiões como o Nordeste, em razão da desigualdade social, “muitos homens até por ignorância acham normal”.

O Ceará possui uma Casa da Mulher Brasileira, três Casas da Mulher Cearense, localizadas em Sobral, Quixadá e Juazeiro do Norte, 17 casas municipais e uma Sala Lilás, na Parangaba.

*A fim de preservar a identidade das vítimas, O Estado não usou seus respectivos nomes verdadeiros. Portanto, Luciana e Vitória são fictícios.

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