Notícias recentes dizem que a polícia matou alguém por engano. Um menino, no Rio de Janeiro e uma jovem, no Paraná, foram mortos por policiais que, por engano, atiraram em carros que supunham ser de bandidos em fuga. Manchete de primeira página da última dessas notícias diz que “Polícia mata, por engano, outra vez.” (Jornal O Estado, Fortaleza, 14/07/2008).
Quem lê uma notícia assim pode ser levado a pensar que o problema consistiu apenas no engano de supor que o carro alvejado era de bandidos. Se não houvesse esse engano, se o carro realmente estivesse ocupado por bandidos não haveria problema. Em outras palavras, carro transportando bandido em fuga poderia ser metralhado e o bandido morto pela polícia, sem problema algum. O problema seria matar alguém, por engano, como se fosse bandido.
Trata-se de uma idéia perigosa e equivocada. Perigosa porque se admitirmos que os policiais estão autorizados a atirar em bandidos em fuga estaremos legitimando a criação de situações de perigo, com ou sem enganos como os que têm sido noticiados. Equivocada porque o policial só pode atirar em alguém se estiver agindo em legítima defesa. Não pode, de modo nenhum, atirar em alguém porque está fugindo. Seja qual for o crime que tenha cometido. Seja qual for a causa da perseguição policial.
Se admitirmos que o policial pode atirar em alguém porque está fugindo, estaremos admitindo que a fuga é um crime para o qual pode ser aplicada a pena de morte, sumariamente, sem direito de defesa, sem o devido processo legal, sem julgamento pela autoridade competente. E isto é um absurdo evidente, porque em nossa Constituição Federal está dito expressamente que não haverá pena de morte, salvo em casos de guerra declarada, nos termos que estabelece. E que aos acusados em geral há de ser assegurado o direito de defesa, o devido processo legal e o julgamento pela autoridade competente.
É da maior evidência, portanto, que no fato de matar um inocente ao metralhar um carro, porque supõe estarem nele bandidos em fuga, a polícia age erradamente não apenas porque se enganou quanto ao alvo. Não apenas porque matou por engano. Age erradamente porque mata sem estar na única situação na qual matar é legalmente permitido, que é em legítima defesa. Comete um homicídio doloso. O erro quanto à pessoa alvejada não desqualifica o crime. Se o alvejado fosse um bandido haveria homicídio doloso da mesma forma, embora a opinião pública seja complacente em casos assim, traumatizada como está pela violência crescente, que tem entre as suas principais causas a ausência de um sistema prisional capaz de evitar a completa degeneração dos condenados.
Seja como for, a imprensa pode contribuir valiosamente para evitar que se consolide a idéia de que o problema da violência policial está apenas no engano quanto às pessoas contra as quais é dirigida. Se admitirmos que o policial pode atirar para matar, sem que atue em legítima defesa, estaremos admitindo a pena de morte, sem direito de defesa, sem processo e sem julgamento. Em outras palavras, estaremos admitindo execuções sumárias, nas quais é inevitável a ocorrência de lamentáveis enganos.