32 C°

16 julho 2008.
Fortaleza, Ceará, Brasil.

aniversario
aniversario

Opinião

O Rádio

quarta-feira, 16 de julho 2008

Naquela tarde, Ramiro Celestino demorou a voltar para casa. Saíra cedo na direção da cidade com a intenção de adquirir (com dinheiro que há anos vinha juntando embaixo do colchão) um pequeno rádio, coisa que jamais se viu ali na Vila das Almas, povoado na beirada do Rio Castro.

Albertina e Luzia foram procurá-lo nas bodegas, já preocupadas com a demora do homem, que chegou em casa sem fazer alarido, colocando o aparelho na sala de estar. Depois de escolher a estação, deitou-se numa rede no alpendre, esquecendo-se até mesmo do susto que a esposa iria levar quando soubesse daquela compra, melhor, do dinheiro gasto.

No entanto, tão encantada ficou ela ao ouvir tango pela primeira vez, que preferiu acreditar que aquele objeto tinha sido doação do céu aos pobres, e passou a noite beijando as mãos do marido. Logo a novidade se espalhou pelo povoado, e atraídos pela curiosidade, muitos foram até a casa de Ramiro para conhecer “o aparelho onde falava Luiz Gonzaga”.

Por resolução da mãe, Luzia ficava bem trancada dentro de seu quarto de solteira, devido aos rapazolas que poderiam se aproveitar da ocasião para chegar ali a fim de namoro. “Casamento é prejuízo”, lembrava Albertina, “mas filha solteira é serventia de casa: se um dia a dona falta, nem carece de empregada”.

Uma vez, Ramiro e Albertina receberam a visita de Irineu, temido agiota que se dizia rico, com o terreno branco de algodão. Trouxe consigo a mulher, Esmeralda, que não se acanhou em pedir: “Coloca aí a Asa Branca, do Luís!” Albertina retrucou: “Dona, não está no querer da gente. A gente não escolhe. Eles lá do outro lado é que escolhem…”

Esmeralda olhou espantada para a outra: “Do outro lado? Credo, quer dizer que esse povo tem parte?” A anfitriã nem respondeu, retirando-se para a sua cozinha. Enquanto isso, Irineu berrou lá do outro lado: “Posso dar uma palavrinha com o Luís, pelo menos?”

Ramiro respondeu que ninguém podia falar com rei, nem mesmo o rei do baião. “Ora, pois assim não tem graça! Quem ele pensa que é? Só porque está dentro desse aparelho… Se estivesse aqui na minha frente ia ser diferente…” – Ralhou Irineu, que tinha fama de puxador de faca.

Esmeralda levou o marido embora antes de começar a arenga, mas Irineu voltou no dia seguinte querendo um particular com Ramiro: “Você ainda se lembra daquele dinheiro que me pediu emprestado? Pois vim buscar o que emprestei mais os juros”. 

Assustado com a inesperada cobrança, Ramiro disse que não podia pagar, o gado estava morrendo no quintal para quem quisesse ver. Entretanto, o outro prosseguiu: “Me dê o rádio e estamos acertados”.

Ramiro não teve escolha, foi buscar o aparelho ouvindo o pranto de Albertina, que, antes de entregá–lo na mão do outro, lançou uma proposta curiosa:

“Seu Irineu, mas que é isso? Cobrar uma dívida assim tão de repente, até parece que foi ontem que fizemos o empréstimo! Somos quase da mesma família, sem contar que já somos todos irmãos pela graça de Deus. Aliás, você ainda tem um filho solteiro?” – Ele assentiu com a cabeça e ela ensaiou uma boa risada. – “Mas veja só como são escritas as linhas do destino…”

O homem olhou para ela com ar de incompreensão. Albertina empurrou Luzia para perto dele e continuou: “Fique com a minha filha solteira, duvido que você encontre por aí uma nora de tamanha prenda. Ela casa logo que seu filho desejar…”

Irineu abriu um sorriso, enquanto que a mulher concluiu, triunfante: “E eu…”  – Apontou para o próprio peito com o indicador. – “Eu fico com o meu rádio”.

hoje

Mais lidas

WP Twitter Auto Publish Powered By : XYZScripts.com