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Fortaleza

Filha adotiva

Pequenininha, de camisolinha rosa, quatro aninhos e uns quebrados, quase cinco. No banheiro havia um banquinho que ela empurrava até a beira da pia para subir e poder alcançar a torneira. Ali ela estava, com seu cabelinho liso preto e sua mordível bochecha branca, escovando seus dentes com a ajuda do pai. Ele a abraçava por traz com a mão em volta do seu corpinho e, com a direita que lhe sobrava, ajudava no vai-e-vem delicado da escova de dente, prévia e generosamente untada com pasta com cheiro de chiclete.
Foi quando ela teve coragem de falar. Olhou para ele com firmeza queixosa e disparou baixinho:

  • Paaaaai, eu queria ser sua filha adotiva.
    Pelo amor de Deus! Ele chegou a duvidar que estivesse ouvindo aquilo mesmo. Aquela miniatura de gente, que poderia àquela época ser considerada um clone da mãe, estava certamente impactada com a permanente celebração da adoção de sua irmã mais velha, mulata dos olhos amendoados. O homem estava preparado para enfrentar eventuais desafios por ter uma família tão colorida e de origem diversa, uns de sangue, outros de coração, todos de alma. Mas estava mais preocupado com eventuais questionamentos da pretinha que lhe chegara magicamente à vida e não da branquela que lhe surgira da forma mais tradicional. Naquela família – lhe pareceu – o grilo estava invertido.
    Sentiu-se recompensado por aquela pergunta, passado o susto. Pensou que naquele lar a adoção não se dava em silêncio complacente, nem se envolvia nas folhas pegajosas do mistério. Era gritada, falada, cantada, vivida enfim. A pequena viu a festa e desejou ser o motivo de igual júbilo. Queria ser ela também a coisa diferente que mexia com as pessoas e as deixavam com a voz embargada de vez em quando. E agora, naquele banheiro, na fruição da intimidade mais gostosa entre pai e filha e filha e pai, cobrava este feito. Como responder?
    As conjecturas que nos atropelam nas angústias se produzem em frações esmigalhadas de segundos. Feita a pergunta, toda esta ordem de sentimentos e sensações se fez à mente instantaneamente, num só fôlego. Sua resposta sai numa velocidade inacreditável, num raio de lucidez em dia de céu escuro. Pumba!
  • Mas filha, você é minha filha adotiva!
    Caramba! A cabecinha da pequena quase se enrolou. Tinhosa e espontânea, não se deixou abater pela estratégia evasiva do marmanjo e exigiu esclarecimento sem demora. Não sairia da sinuca tão facilmente, nosso varão.
  • Mas pai! Eu não sou sua filha ‘bisológica’?
    Xeque. Explica aí ó grande sapiente, espertão. Ela sabia que tinha nascido da barriga e que a mana havia chegado de outra fonte, já lhe havia sido devidamente contado, com recurso à história de castelo, princesas, príncipes e até sapo. Se ela era da barriga é porque era ‘bisológica’, com todas as letras! Todavia, o sujeito parecia ter uma carta na manga, daquelas sopradas pelo imponderável. O anjo da guarda ajuda ao pai que ama. Riu-se um pouco daquela criaturinha e, com muito carinho, a puxou inteira para seu colo e disse:
  • Você, meu amor, é minha filha biológica sim. Mas todos os dias eu te levo para o colégio, te pego no ballet, no sábado a gente vai ao clube e na praia, brinca de casinha e de lobo mau. Quem faz essas coisas com você?
    A garotinha olhou para cima, com olhos de pensar, meditabundos. Era aquele pai ali, o seu, que fazia isso tudo mesmo. Então respondeu a resposta que ele queria: VOCÊ. Ouvindo isso, pôde arrematar sua conclusão para o enigma da adoção do filho biológico.
  • Então! Eu te amo tanto que te adotei. Eu te adoto todo dia. Te adoto quando você acorda, quando faz o dever de casa, quando a gente viaja para a casa da vovó, quando dou bronca, quando preparo banana com nutela pra você. Eu de adoto todos os dias!
  • É isso, então a tal da adoção, papai? Perguntou a pequetita com seus olhos de carambola bem abertinhos.
  • É só isso, amor. Eu te adoto todo dia e o dia todo.
    Pronto. Xeque–mate. Tudo resolvido. A bonequinha o abraçou bem forte, forte mesmo, com os bracinhos apertando seu pescoço e o rostinho colado com o seu. Uns cinco beijinhos com barulho ela deu no rosto do homem sem perceber a lágrima tímida que dele escapara impunemente. Pai e filha adotiva de verdade, por opção, por atitude, por amor. E foram dormir.
  • SÁVIO BITTENCOURT
  • ESCRITOR E MESTRE EM HISTÓRIA SOCIAL

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