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“As Varas da Infância precisam de mais equipes para acompanhar as crianças de forma adequada”, afirma psicóloga

Bárbara Monte é psicóloga e educadora com pós-graduação em Violência Doméstica pelo Instituto Sedes Sapientiae (SP) e Mestrado em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Atualmente colabora com a gestão das ações de psicologia da Ser Ponte Fortaleza-Ce, e constitui o coletivo AOCA-CE (Articulação de Apoio à Orfandade de Crianças e Adolescentes pela Covid-19). O seu percurso é construído em políticas públicas da saúde e assistência social e com atuação no campo da psicologia educacional e escolar. Recentemente, lançou o livro intitulado ‘Minha casa não é minha e nem é meu este lugar’, abordando características das instituições de acolhimento e, também, de certas políticas que o Estado brasileiro adotou historicamente. Em entrevista ao Jornal O ‘Estado ela fala sobre o cenário de adoção no Brasil e algumas mudanças necessárias para que o vínculo familiar aconteça da maneira correta.

Foto: Divulgação

O ESTADO | Como surgiu a ideia de falar sobre a situação das crianças acolhidas em instituições?
BARBARA MONTE | O meu livro é o resultado de um projeto de extensão realizado no Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisas sobre a Criança (UFC) que foi desenvolvido em um serviço de acolhimento do Estado. O projeto de extensão foi uma parceria entre a antiga STDS( Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social) e o NUCEPEC. A proposta consistia em implantar o Projeto Fazendo Minha História, ferramenta elaborada pelo Instituto Fazendo História de São Paulo, neste serviço de acolhimento. Eu fui técnica do Instituto Fazendo História que desenvolve formações, intervenções e projetos voltados especificamente para essa realidade, com foco no trabalho junto às histórias de vida das crianças e adolescentes em acolhimento e portanto fui convidada a fazer essa articulação. O projeto de extensão tornou-se o campo de pesquisa da minha dissertação que é publicada agora, é no que consiste o meu livro. Eu pesquiso a realidade do acolhimento institucional a partir das narrativas autobiográficas das crianças. Questiono se as crianças e asfamílias são escutadas. Quais histórias contam, como são contadas e o que se deixar de contar em contextos de acolhimento. Como as narrativas contadas pelas crianças e para as crianças podem ser fatores de risco ou proteção para vivenciar a realidade do acolhimento.

OE | Quais as principais dificuldades e avanços das casas de acolhimento no Brasil?
BM| As atuações na realidade do acolhimento de forma geral ainda se remetem às práticas comuns às instituições totais, próprias da Doutrina da Situação Irregular, do Código de Menores , coexistindo com práticas que emergem da Doutrina de Proteção Integral representada no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Ao mesmo tempo que ainda existem práticas e discursos que compreendem os acolhidos como indivíduos irregulares que precisam ser disciplinados ou são vistos como objetos de caridade existem ações que sustentam a doutrina materializada no ECA que possui como referência a concepção da criança como sujeito de direitos e práticas que priorizam o seu contexto sócio-histórico. O IPEA( Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada) desenvolveu um estudo referente aos anos de 2010 a 2018 sobre a trajetória dos serviços de acolhimento. Avançamos na elaboração de diretrizes voltadas para essa política pública como o reordenamento dos serviços de acolhimento e a implementação de novas modalidades de acolhimento (famílias acolhedoras e repúblicas), mas a implementação dessa política ainda não se fez completamente. É necessário consolidar o Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária, ter profissionais com formação e salários adequados, além de processos de regionalização e expansão qualificada para que chegue a todos os municípios.

OE | Quais as principais dificuldades no processo de adoção?
BM| A Lei de Adoção (Lei n. 8.069, 1990) retoma os pressupostos já afirmados no Estatuto da Criança e do Adolescente. Ela enfatiza a convivência familiar e comunitária, e coloca a adoção como medida excepcional. O objetivo do serviço de acolhimento não é prioritariamente a adoção mas a reinserção familiar já que o ECA coloca como direito fundamental à convivência familiar e comunitária. A adoção é um dos desdobramentos importantes que podem ocorrer no percurso de acolhimento de uma criança ou adolescente. A minha crítica é voltada para a sobrecarga das Varas da Infância e Juventude e o número insuficiente de equipes técnicas para acompanhar os processos de adoção de forma adequada.

OE | O que precisa avançar para garantir os direitos das crianças acolhidas?
BM| Que as políticas públicas sejam implantadas de acordo com as suas diretrizes e a Constituição Federal. É preciso que o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente, constituído por conselhos tutelares, promotores, juízes, defensores públicos, conselheiros de direitos da criança e adolescente, educadores sociais, profissionais que trabalham nas políticas públicas de educação, saúde e assistência social, profissionais e voluntários de entidades de defesa dos direitos humanos de crianças e adolescentes trabalhem em rede, com profissionais que possuam formação adequada e em condições que não sejam precarizadas.

OE | Quais os principais impactos que as casas de acolhimento trazem na vida de crianças e adolescentes ?
BM| Os serviços de acolhimento podem salvar vidas, colaborar para que situações de negligência, abandono ou violência sejam trabalhadas priorizando os vínculos familiares e comunitários com a consequente reinserção familiar ou adoção. A experiência do acolhimento não precisa ser necessariamente uma experiência traumática, isso dependerá de como esse processo será conduzido. Por outro lado, se o acolhimento não for realizado de forma adequada, ocorrendo rompimentos de vínculos, massificação da subjetividade devido a processos de institucionalização e encaminhamentos inadequados para e durante a adoção, com certeza esses eventos terão efeitos no desenvolvimento das crianças e adolescentes, nas suas possibilidades de construção de vínculos e socialização e na promoção de sofrimentos psíquicos de acordo com a singularidade de cada história.

OE | Quais as principais políticas públicas são necessárias para que essas casas de acolhimento recebam uma maior visibilidade e recursos?
BM| Como eu já citei acima todo o Sistema de Garantia de Direitos, com destaque para o SUAS( Sistema Único de Assistência Social), fundamentados no ECA, afirmam que crianças e adolescentes são prioridade, o que é necessário é que os municípios implantem integralmente as políticas públicas e que o Sistema de Garantia de Direitos consiga atuar de forma articulada. Sobre a visibilidade é importante que os meios de comunicação abordem esse tema, que esta realidade seja uma pauta política prioritária para os governantes, principalmente com a alta taxa de orfandade pelo Covid-19. Não podemos ignorar, porém, que essa é uma questão estrutural, como já informei acima, dentro da crise civilizatória que vivemos. A quem interessa o acesso a direitos de crianças e adolescentes em sua grande maioria negros e em vulnerabilidade e risco social? Para quem elas são prioridade? Violência, abandono e negligência também ocorrem com crianças e adolescentes brancas e com recursos financeiros, mas elas não são institucionalizadas. O Brasil tem um longo histórico de institucionalizar a pobreza, eu abordo isso também no meu livro.

OE | Como você avalia o cenário de adoção no Brasil?
BM| Vejo que as pessoas estão mais informadas, que há menos estigmas e a compreensão de que a adoção é uma via para quem deseja constituir uma família, se tornarem pais e mães. A adoção não é uma caridade. Ressalto, porém, que como todo processo de tornar-se pai ou mãe, a adoção também implica uma gestação. Isso demanda tempo, reorganização familiar, construção de vínculo e um olhar para os seus processos internos e para a história da criança ou adolescente anterior a adoção, que não deve ser negada pois faz parte da sua identidade. Às vezes esses processos não possuem o devido acompanhamento, pelos motivos já expostos acima e suas etapas são atropeladas e em alguns casos as crianças são devolvidas para as unidades de acolhimento como eu mesma já presenciei e os efeitos disso para os adotantes e as crianças são devastadores.

Precisamos de Varas da Infância e Juventude menos sobrecarregadas, equipes técnicas de qualidade e com condições de trabalho, tanto no judiciário quanto nos serviços de acolhimento e com a grave situação da orfandade pelo Covid precisamos do desenvolvimento de políticas públicas e ações voltadas especificamente para essa realidade que passa a compor a realidade dos serviços de acolhimento.

Por Dayse Lima

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