Você que tem um lar, recebeu amor e proteção, já parou para pensar quantas crianças e adolescentes vivem em abrigo sem esses direitos? Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Brasil tem cerca de quatro mil crianças e adolescentes em instituições para serem adotadas. E com desejo de levar essas crianças para casa para garantir por meio de adoção tudo isso, existem 46.390 pretendentes cadastrados.
Na tentativa de dar celeridade ao processo de adoção que é lento e burocrático, está previsto no artigo 19-A do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a entrega voluntária, onde determina que as gestantes ou mães que demonstrem interesse em entregar seu filho para adoção, deverão ser encaminhadas para a Justiça da Infância e Juventude.
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Por falta de informação, muitas mulheres desconhecem esta medida e abandonam ou entregam para adoção ‘à brasileira’, medida irregular, que consiste no ato de entregar a criança para outra pessoa, e esta registrar em cartório uma em seu nome, sem passar pelos trâmites da Justiça, furando a fila das pessoas aptas a adotarem.
Lidia Weber, doutora em psicologia, professora da UFPR, autora e organizadora de 17 livros, sendo sete sobre adoção, afirma com exclusividade ao Jornal O Estado que, “por falta de conhecimento sobre leis, sobre família, sobre direitos, sobre desenvolvimento humano”, esta medida ainda é desconhecida e carrega muitos preconceitos. “Muitos que estão no sistema não concordam com ela, tem preconceitos, julgam as mulheres, não esclarecem e não divulgam a possibilidade da entrega responsável. Ela precisa ser mais falada e divulgada em postos de saúde, em hospitais, em matérias jornalísticas. Ainda existem muitos abandonos nas ruas, em locais públicos, isso, sim, é triste. Claro que também é preciso divulgar e falar sobre relacionamentos, sobre pílulas e proteção. Penso que sempre depende muito da equipe dos Judiciários, seu conhecimento e seus conceitos e preconceitos sobre essa questão”, reflete.
Weber chama atenção sobre a medida da entrega voluntária, onde pontua ser pouco discutida em sociedade. Além disso, salienta que é preciso treinar e preparar com cuidado as pessoas dos Conselhos Tutelares dos municípios que, muitas vezes, não têm conhecimento sobre a medida. “ É preciso explicar com clareza que registrar uma criança no próprio nome é um crime e não deve ser feito, que tudo deve ser passado pelos Conselhos Tutelares e pela Justiça”, ratifica.
Sobre a decisão consciente de uma mulher entregar a criança para adoção responsável Weber enfatiza: “Sempre existiram mulheres que não querem ou não podem criar o seu filho e esse é um direito social. Muito melhor fazer a entrega legal do que abandonar na rua ou na porta de uma igreja. Mesmo em países desenvolvidos, nos quais o aborto é permitido como na França, existe o que eles chamam de “parto anônimo”, em que a mulher decide ter o filho, mas o deixa para ser encaminhado para a adoção. No Brasil, por muito tempo foi visto como errado e os setores que acolhiam mulheres grávidas e que gostariam de deixar o filho para a adoção, acabavam sendo “convencidas” que não deveriam fazer isso”, diz.
A psicóloga explica ainda que, a mulher que deseja fazer a entrega legal passa por uma avaliação para determinar se é uma questão transitória, como depressão pós-parto, por exemplo, ou se, de fato, não quer ser mãe daquela criança. “Tenho uma pesquisa com mulheres que deixaram seus filhos em abrigos, em lugares não seguros e a maioria delas não queria de fato ser mãe. Há questões por trás, essas mulheres em sua maioria absoluta tiveram infâncias terríveis. Ou seja, é preciso que a sociedade cuide da família como um todo em vários sentidos”, chama atenção.
NA PRÁTICA
Paulo André, psicólogo da Coordenadoria da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de Pernambuco e coordenador do Programa Acolher, compartilha também com exclusividade ao jornal O Estado que a experiência da entrega responsável de recém-nascidos para adoção é bastante desconhecida. “Observamos que quanto mais a gente capacita e divulga, vamos evitando situações de violações de direitos como situações de abandono e situações irregulares”, sinaliza.
O coordenador também afirma que “se as mulheres fossem orientadas e deixassem de abandonar as crianças, onde passarão por um processo de destituição familiar, e os pais serão processados e esse poder familiar será retirado deles, processo este que demora, e realizassem a entrega legal, certamente, o tempo da criança no acolhimento seria muito menor. Temos a margem de um mês depois que a criança nasce para encerrar esse procedimento”, revela.
EM FORTALEZA
Em Fortaleza, em setembro de 2022, foi instituído o Programa Municipal Entrega Legal de Crianças à Adoção, coordenado pela Fundação da Criança e da Família Cidadã (Funci), presidida, atualmente, pelo ex-deputado Raimundo Gomes de Matos.
O presidente enfatiza que Fortaleza se destaca por ter sido a única cidade pioneira no projeto, e explica que existe toda uma cadeia de psicólogos, uma equipe para que a adoção seja efetivamente segura, com privacidade e consciência da mãe. “Os resultados são bastante positivos. Existe diálogo com a Justiça da Infância e da Juventude, com a juíza que coordena as ações, tudo no mais absoluto sigilo sobre quem vai entregar e ficar com a criança, para evitar análise do perfil que a família vai adotar, para não ter tráfico de criança, para que não possa ser levada para fora do País. Temos um protocolo de atendimento que consta um passo a passo para construção de uma decisão consciente e responsável”, explica.
De acordo com Silvana Garcia, coordenadora do programa, desde quando o projeto iniciou, 30 casos já foram acolhidos pela instituição. “Oito já foram encerrados, seis mães desistiram de entregar para adoção, oito estão sendo acolhidas para a reafirmação de que não querem ficar com as crianças e oito gestantes estão sendo acompanhadas por meio de atendimentos psicosocial”, salientou.
Questionada sobre quantas crianças já foram adotadas neste processo, a coordenadora explica que, por conta do “sigilo” sobre os casos, não pode revelar. “Nós acompanhamos cada caso individualmente. Do acolhimento das mães até o momento de vinculação. A partir de então, é com a Justiça”, conta.
Silvana frisa que, além dos eixos do acolhimento das crianças que são entregues em adoção, do atendimento psicossocial de mulheres, o programa trabalha para levar a informação na ponta. “A mulher tem esse direito e acolhimento. Então, trabalhamos a entrega legal nos postos de saúde, nos hospitais, aos Agentes Comunitários de Saúde (ACS). São nesses locais que as mulheres manifestam o desejo de entregar as crianças e são nesses pontos que atuamos”, esclarece.
Silvana também enfatiza que a entrega legal ela contribui para que o processo de adoção seja mais rápido. “Os prazos muitas vezes não são cumpridos, em razão dos inúmeros processos de adoção na Justiça, mas, sem dúvida, essa medida é mais célere na questão da adoção”, pontua.
Por Rochana Lyvian